Sentado sobre um banco de concreto, isolado e compenetrado, seus grandes olhos fitavam o vazio. Era nosso colega de classe Fernando. A noite seguia sem estrelas e sem lua. A grama estava seca. Resultado do sol intenso daquela tarde calorenta. A parca iluminação do campus nos deixava numa mescla de perplexidade e desespero. Não haveria a primeira aula, somente a segunda. Talvez a imagem daquele rapaz sentado sozinho de olhos tão grandes e brilhantes fixados no vazio nos inserisse esse desespero e perplexidade. Talvez a ausência das estrelas, da lua e a fraca iluminação do campus. Talvez tudo isso combinado a uma voraz insatisfação pelo curso que eu levava ali.
Enquanto isso, aguardávamos por ali. Fernando também aguardava. Sem dúvida alguma ele tinha os olhos maiores e mais estranhos que eu já tinha visto. Aqueles dilatados olhos castanhos tinham um brilho enigmático, quase diabólico. E quando ele começou a sorrir silenciosamente durante as aulas, seu sorriso não era o dos piores: dentes líneos, claros. No entanto, seu sorriso perdia em graça ao notarmos para quem ele era direcionado. E eu hei de concordar que as paredes de nossa sala, monótonas e austeras como qualquer outra parede do mundo, não tinha nada de engraçado. As garotas e os rapazes começaram a ter receios de Fernando. Talvez por isso não se aproximassem dele e não o convidassem para seus grupos de apresentação de trabalhos em classe. Mas até aí tudo bem, pois eles também não me convidavam.
No entanto, fazia alguns dias que nosso colega estava vendo alguma coisa que nos era invisível. Por certo era algo bastante engraçado e interessante dado seu sorriso cada dia mais constante. Vendo Fernando agora sentado sobre aquele banco, com os olhos fixos no nada, o sorriso na face redonda e a conversa interminável com coisa-alguma, me era impossível não ser tocado por um sentimento de compaixão. Eu sabia muito bem como era frustrado não ser aceito.
Então avancei em sua direção e sentei ao seu lado naquele rígido banco em concreto. Fernando olhou-me por alguns segundos com seus surpreendentes olhos, balançou a cabeça, lentamente, de cima para baixo e de baixo para cima, depois deu uma tragada e seu cigarro e voltou a olhar fixamente para frente.
Tentei puxar assunto, mas suas respostas eram evasivas. Eu não era um fumante, mas pedi um cigarro para ele. Ele me passou um, me olhando como se eu fosse irreal. Eu não poderia atingi-lo. Fernando estava numa outra dimensão e observava as coisas para além do convencional. Ele estava perdido dentro de si. Os outros colegas de classe nos olhavam curiosos. Deviam estar pensando: “A dupla perfeita”. E assim como Fernando, eu também estava cagando para eles. Mas Fernando estava numa dimensão superior. Eu não podia alcançá-lo. Ele estava em vôo alto.
- O que tu achas deles? – perguntei a Fernando apontando na direção dos nossos colegas, que juntos estavam conversando junto a porta da sala.
Ele não me respondeu. Apenas continuou olhando fixamente para o nada.
- Eu os acho muito imaturos – disse eu por fim achando que ele se encorajaria.
Mas ele não se encorajou, contudo.
Seu olhar estava tão desprovido de vida, embora tão brilhantes e acessos. Ele não estava drogado, era algo além disso.
Seu olhar parecia atravessar tudo, mas se você olhasse por alguns segundos que fosse dentro daqueles olhos imensos, você encontraria uma avassaladora tristeza, no entanto, não havia pedido de socorro. Ele parecia tranquilo e distante.
- O que tu estás achando do curso? – continuei insistindo. – Por que tu escolheu Geografia?
Ele respirou fundo. Seus olhos me apanharam por alguns segundos. Eram, se dúvida, olhos muito tristes e exaustos.
Então resolvi ficar calado. Não sabia mais o que dizer e nem o que fazer. Talvez eu devesse me erguer e deixá-lo ali com seus fantasmas. Mas não o fiz. Fernando e eu permanecíamos ali sentados como dois dementes a olhar fixamente e de forma perplexa o nada em absoluto. E o nada me parecia agora tão grandioso e insignificantemente significante. Eu estava me perdendo em meus pensamentos, cada vez mais abstratos e dispersos, enquanto o meu colega ao lado já esta por completo nos seus.
Então o professor entrou na sala. Os demais colegas entraram em seguida.
- Vamos entrar? – sugerir ao meu parceiro.
- Vá lá – responde-me ele dando mais duas tragadas no cigarro que se findava. – Eu vou depois…
Nosso colega não voltou naquela noite, nem nas noites seguintes à sala de aula. A turma sentiu sua falta. Eu também senti. Até que numa certa noite o professor de Geografia Física entrou em sala de aula com a expressão pesada, olhando fixamente para sua mesa, se acomodando por fim atrás da mesma para depois nos encarar e dizer:
- Tenho uma notícia triste para passar. O colega de vocês, o Fernando, infelizmente, ontem à noite, cometeu suicídio. A mãe dele informou à direção que seu filho sofria de depressão profunda. Já tinha até sido internado algumas vezes.
Silêncio geral.
As garotas e os rapazes olhavam uns aos outros, boquiabertos deixando transparecer em seus olhos um estranho espanto misturado com descrença. Enquanto eu só conseguia pensar no fato de que Fernando havia conseguido voar mais alto do que qualquer um de nós. Ele voou para além das estrelas e se perdeu no vazio.
2 comentários:
relato caro Walter,que a (Crônica, vôo de Fernando)foi muito bem redigidas por você ,e
desejo-te que faça muito mas proveito de suas habilidades literárias.
do pensador Wagner.
http://versosliterarios.blogspot.com
Muito bonito!
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