Era mais uma daquelas
tardes de chuva na cidade. O trânsito intenso e lento fazia com que as horas em
contra gotas passassem. Tudo era uma mescla de apatia e resignação. Os ônibus
passando lotado para os municípios de entorno a Belém. Seguíamos para
Ananindeua, Marituba, Santa Bárbara, Benevides, Benfica... Era assim
cotidianamente na Região Metropolitana de Belém. Um vai-e-vem enfadonho e
banalizado. Restava-nos olhar pela
janela ou nos espremermos entre bundas, pernas e sovacos fedorentos nos ônibus
lotados e abafados. O olhar das pessoas
era um deserto profundo de solidão, cansaço e conformidade. Havia apenas um
desejo latente: chegar em casa.
Foi quando um
senhor de meia idade sentou-se ao meu lado. Eu havia conseguido a sorte grande
de pegar um ônibus quase vazio.
- Vou sentar
aqui do seu lado, mas não vou incomodar seus estudos – falou-me o senhor
sentando-se e arrumando suas sacolas de compras entre suas pernas.
Assenti com a
cabeça e continuei rabiscando um texto que jamais conseguiria finalizar ali.
- Posso te
fazer uma pergunta? – virou-se para o meu lado o senhor com gestos imperativos.
Novamente assenti
com a cabeça e tentei batalhar mais algumas palavras no meu caderno de anotação.
- Acho isso que
está acontecendo muito injusto! – enfatizava ele com profundo sentimento na
entonação de sua voz arrastada. Ali comecei acreditar que aquele autêntico
senhor estava um tanto quanto embriagado.
Fechei meu
caderno e olhei para ele com profunda compaixão e interesse na sua dor pessoal.
Eu ainda continuava a ser uma maldita esponja de sentimentos alheios.
- Depois de
tudo que o presidente Lula fez e toda essa coisa que tão falando dele ai. Não é
justo. Minha filha vai se forma em Geologia esse ano e viajou pra fora do país
graças ao governo dele. Nunca um filho de pobre teve essa chance que teve
agora... Não é justo!
Ele realmente
estava muito abalado com o cenário político do Brasil naquele momento. E tinha
na figura do governo algo bastante positivo, paternalista e sua insatisfação
era muito grande.
- Eu sou
operário, ganho menos de um salário por mês – continuou ele agora aos berros –
e mesmo assim minha filha vai se forma! O Fernando Henrique que é estudado não
é chamado pra dar palestras na Europa, mas o Lula que é um quase analfabeto é convidado
pelas melhores universidades do mundo pra falar. Isso que é a raiva deles! Isso
que eles não engolem!
A situação era
bastante inusitada. Meu caderno já estava fechado fazia alguns minutos. Eu sabia
que ele não pararia de falar.
Apanhar esses ônibus
que vem da Universidade Federal é bastante complicado. As pessoas pensam que
porque estamos com o caderno aberto ou com um livro aberto ou com mochila somos
um acadêmico de merda. E o pior é quando
passamos a viagem inteira ouvindo estudantes empolgados a falar rasteiramente o
que leram em suas apostilas tiradas na cópia como se fossem coisas mais
importantes do mundo e fruto de um intenso estudo sobre.
- Qual é o seu
nome, rapaz – perguntou-me ele.
No que eu
rapidamente respondi: - Álvares, senhor...
- Pois bem,
Álvares. Você não concorda comigo? – fuzilou-me ele com essa pergunta e com o
seu olhar bastante vidrado e cheio de certezas absolutas sobre o que falava.
Apenas olhei
para ele e baixei a cabeça. Eu odiava todo o sistema político nacional e acreditava
que somente uma radical estruturação desse sistema de governar poderia de fato
dar em alguma mudança. Mas naquele momento eu só queria escrever sobre a lógica
realista descritas pelas putas do centro da cidade de Belém e sobre a calmaria
que é beber uma gelada às margens da Baía do Guajará na orla do Ver-o-Peso às
5:30 horas da tarde.
- Você nem parece
que é da Universidade! – esbravejou ele – Não sabe discuti política! Qual é o
seu problema, rapaz? Que olhar triste é esse? Você não é um derrotado.
- Acho que eu
não estou em uma competição. Eu não busco ganhar algo, ser um vencedor na vida.
Deixo isso para os outros. O senhor não acha que tem gente demais querendo
vencer na vida?
- Você faz que
curso na Universidade?
- Nenhum. Não
confio no conhecimento universitário. Pois tudo que forma, forma alguma coisa
num molde. Definir o que as pessoas são é nojento, injusto e imoral. Eu me
recuso ser rotulado como produto e vendido no mercado de trabalho como peça para
alavancar todo esse sistema podre que estamos vivendo hoje.
- Você não diz
coisa com coisa. Eu até que tava meio que porre, mas já até fiquei bom. Você,
Álvares, precisa de umas boas doses de cachaça e principalmente de uma boa trepada
com uma boa boceta. Vou descer aqui antes que eu dei um pau nessa tua cara de
lua cheia, seu doido.
E assim aquele
nobre senhor desceu o coletivo sem olhar pra trás. Suas palavras finais
mexeram comigo e eu só pensava seriamente que talvez eu estivesse realmente precisando
de uma boa trepada...
(Walter Rodrigues)