Numa tarde de junho de 2012, a escritora Lygia Fagundes Telles recebeu o Portal Literal em seu apartamento, no bairro dos Jardins, na capital paulista, com vinho do Porto e biscoitos amanteigados, para uma conversa sobre sua trajetória. Quando surgiu na sala, nada indicava que ali estava uma mulher de quase 90 anos. Sua força, beleza e extrema gentileza são impactantes. “Vocês não vão beber?! Bebam!”, a todo momento incitava a equipe a beber mais vinho.
Sentada no lugar predileto, ao lado das plantas, em frente à estante repleta de fotos e lembranças de familiares, cercada por pinturas, algumas do filho Goffredo da Silva Telles Neto, Lygia relembrou, ao longo de quase duas horas, episódios do passado, recitou versos guardados na memória, falou dos queridos amigos (Clarice, Caio F., Drummond, Érico Verissimo), da sua relação com a escrita e seus personagens, do lidar com a vida e a morte. O que impressionou na força de seu depoimento é o amor pelo ofício, dedicação de vida ao “chamado” que recebeu ainda mocinha na escola.
Neste encontro, Lygia Fagundes Telles, a menina contadora de histórias que aceitou sua vocação para se tornar uma das mulheres mais respeitadas da literatura brasileira, revela-se tão grande quanto a sua prosa repleta de magia, o poder criador de suas palavras.
Portal Literal: A senhora disse recentemente em uma entrevista que, na juventude, foi pobre e subversiva. Como lidou com essas dificuldades iniciais e de que forma foi subversiva?
Lygia Fagundes Telles: Eu tive uma infância rica. Meu pai era um homem maravilhoso, mas era um jogador, então, jogou tudo. Então eu tive que trabalhar para pagar meus estudos. Era uma luta. Além da luta normal, a luta com a palavra. Como dizia o Drummond: “Lutar com a palavra é a luta mais vã, contudo lutamos mal rompe a manhã”. Além da luta pelo dinheiro, havia a luta pela palavra. Era uma luta dupla. Fiquei então uma lutadora. Só faltou botar aquelas luvas de box [risos]… Foi uma juventude muito difícil, muito complicada. Mas fui até o fim. É preciso coragem. Carlos Drummond de Andrade tem outro poema do qual eu gosto muito: “Penetra surdamente no reino das palavras, lá estão elas em estado de dicionário e te perguntam, sem interesse pelas respostas: trouxeste a chave?”. É muito bonito isso. Essa chave de abrir as palavras, de abrir a própria vida, essa chave exige uma luta, e é uma luta bonita. E assim eu fui. Então eu me acostumei desde cedo a essa imposição. “Vai, vai… trouxeste a chave?”. Essa pergunta eu fiz a mim mesma muitas vezes e a mim mesma eu respondi.
PL: A senhora chegou a ser afetada pelas ditaduras que testemunhou?
Lygia: Muito. Vou contar uma história para vocês. Eu era uma mocinha, com pulôveres fechados, cabelo escorrido. Durante uma manifestação, ia segurando a bandeira brasileira com outras moças do Largo São Francisco, e, atrás, o estandarte da Faculdade de Direito. Então o Getúlio Vargas mandou ordem para São Paulo para que não permitissem que os estudantes falassem. Então eu fui a uma casa de tecidos e pedi uma tela preta, essas que cobrem os defuntos, porosas, para pormos na boca. Já que o Getúlio tinha proibido falarmos, então íamos com aquele tira para a rua. Eu cheguei na loja e disse: “Me veja um tecido preto poroso, desses que cobrem os defuntos”. Ele trouxe a peça e eu pedi: “Por favor, uns 3 ou 4 metros”. Ele me olhou e perguntou: “Mas o defunto é grande assim?” [risos]. Saímos todos com a tira na boca, em protesto. Justamente nessa nossa caminhada havia um rapaz ao meu lado, também com um pano preto. De repente ele caiu no chão, vomitando sangue. Por detrás vinha a Polícia Militar metralhando. As lojas fecharam as portas. Um horror. Foram arrancados os livros de vários poetas e prosadores das vitrines. Foram proibidos vários poetas e prosadores que eram considerados ofensivos à ditadura de Getúlio Vargas. Eu sei que tem gente que ama o Getúlio, e eu respeito esse amor. Mas eu tinha horror a ele. Os estudantes também, incluindo o que morreu do meu lado, vomitando sangue. Eu fui para o hospital e quando cheguei em casa minha mãe estava tendo um ataque, porque não tinha televisão nessa época, só o rádio, e ela escutou pelo rádio que os estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco tinham sido alvejados pela PM e que um dos estudantes ou uma estudante, estava morrendo no hospital. A minha mãe pensou: é a minha filha!
Agora, depois… Durante a ditadura militar eu estava escrevendo o romance “As meninas”. E nesse romance há uma jovem que é justamente a subversiva. Tem a mocinha, que é a Lorena, bonitinha e tal, família rica, tudo em ordem. Tem a outra que é a Ana Clara, que chamam de Ana Turva, a drogada. E tem a terceira que é justamente a subversiva, a Lia. Eu penso sempre que o escritor tem que ser testemunha do seu tempo e da sua sociedade. Nesse romance eu quis testemunhar aquele tempo e aquela sociedade através de três jovens, a burguesa, a subversiva e a drogada.
PL: E quanto ao panfleto que incluiu nesse livro?
Lygia: Eu estava com Paulo Emilio Salles Gomes, meu segundo marido, na minha casa, na Rua Sabará quando recebemos um panfleto extraordinário de um homem torturado pelo DOI-CODI, pela Polícia Militar. Recebi esse panfleto e disse: “Paulo, que panfleto terrível, está dizendo coisas horrendas, ele está contando coisas horrendas que ele viveu”. E então perguntei: “O que eu faço com isso?”. Ele respondeu: “Coloca no seu livro”. E eu coloquei, está lá em “As Meninas” a tortura que esse homem sofreu no DOI-CODI, o sapato enfiado na boca, ele dependurado no pau de arara, os choques elétricos nas partes… Ditadura Militar… Por isso que a Comissão da Verdade é da maior importância, porque é a nossa história, não pode ser omitida, tem que ser trazida ao público para todos saberem o que aconteceu.
PL: A senhora costuma ter algum ritual para escrever?
Lygia: Ausência, silêncio… Eu, de um certo modo, me fecho com meus personagens e fico com eles ao meu redor. Eu levo uma vida muito fechada comigo mesma, gosto muito de música, ouvir Wagner, Beethoven, Chopin, ouço muito concertos, gosto muita da TV Cultura, eles têm programas excelentes… Fico fechada comigo mesma porque, embora eu não seja uma companhia maravilhosa para mim mesma, acabo me divertindo comigo. Então fecho a porta.
PL: E quando um livro chega ao fim?
Lygia: Quando eu estava terminando “As meninas”, eu estava em Barra de São João, província do Rio de Janeiro, numa chácara onde eu ouvia o mar. Era madrugada quando terminei. E de repente comecei a chorar porque eu estava me despedindo das minhas personagens, não ia tê-las mais comigo, era o adeus. Aí uma personagem veio, sentou no meu colo e disse: “Eu sou tão interessante, você não vai me aproveitar outras vezes?”. Eu disse: “Vamos ver…”. Ela disse: “Eu voltarei com máscara”. As personagens são como nós mesmos, elas querem viver mais tempo, elas não querem ser encerradas no livro. Elas criam digamos que vida própria e exigem um tempo. Oswald de Andrade escreveu uma coisa engraçada. Ele disse que um personagem já atormentou tanto ele, toda hora vinha, “Olha eu aqui!”, então ele pegou e jogou a personagem no mar, afundou e nunca mais. Mas eu queria dizer o seguinte, as personagens ficam em torno do escritor, conversam com o escritor, exigem vida própria. São como nós mesmos, não querem morrer. Querem continuar, então, nessa vontade de continuação eles voltam mascarados. Você tira aquela máscara e vê: “Ah, mas você é aquele lá!”.
PL: A senhora e Clarice Lispector foram amigas. Como começou essa amizade? E por que ela lhe mandou não sorrir nas fotografias?
Lygia: A Clarice gostava muito dos meus livros, eu estava no Rio de Janeiro, passando lá uma temporada. Ela me procurou e disse: “Lygia, precisamos nos impor porque na literatura do Brasil não levam a sério as mulheres. Fica séria não ria, você ri demais, não pode, tem que manter a cara fechada.” Ficamos amigas. Depois fomos juntas pra Colômbia, para um congresso de escritores.
PL: E a senhora também era uma leitora da Clarice?
Lygia: Eu tinha grande admiração pela Clarice. Já tinha lido os primeiros livros, os contos, “O Lustre”, os primeiros livros dela, e nós tínhamos muitos amigos em comum. A Clarice era muito amiga do Erico Verissimo, que gostava muito dela. Eu era muito amiga dele também, então falávamos sobre o Erico e os nossos amigos comuns, sobre a vida, sobre a morte, sobre o amor, as nossas conversas eram muito longas e ela repetia [imitando Clarice]: “Eu creio, Lygia, que nós mulheres estamos muito pouco consideradas no Brasil, mulher não é ouvida nem lida no Brasil, vamos nós duas nos impor! Não ria, fica como eu, brava mesmo!”.
PL: Certa vez um jornalista perguntou para Clarice por que ela escrevia, e ela respondeu com outra pergunta: “Por que você bebe água?”. Você mesma já se fez essa pergunta? E se há uma resposta, é uma resposta que tem se mantido com o passar do tempo?
Lygia: A vida inteira, desde menina, eu contava historias. Quando não sabia escrever, inventava histórias de lobisomem, de alma penada, histórias horríveis. Um dia comecei a escrever nos meus cadernos de escola as histórias que eu contava. Foi assim, o começo foi esse. Uma professora viu no meu caderno, nas paginas no final do caderno, uma história minha e disse: “Menina, vem cá”. Era uma professora de História. “Por que você está escrevendo essas bobagens aí?”. E eu, pela primeira vez assumi a minha vocação: “Não é bobagem, é uma história que eu inventei”. Vocatio, vocação; vocare, chamado.
Desde sempre eu contei histórias. Não me vejo em outra situação a não ser contando histórias quando criança. Não considero meus primeiros livros, apaguei da minha história, da minha vida, os primeiros contos, que considero “juvenilidades”. Começo, isto sim, a considerar meu trabalho a partir do livro “Ciranda de Pedra”, o resto, como diria Shakespeare, o resto é silêncio.
PL: Fale-nos de sua amizade com Caio Fernando Abreu e Carlos Drummond de Andrade.
Lygia: Caio era meu querido amigo, conversávamos muito sobre a nossa profissão, de mãos dadas, conversávamos muito sobre essa paixão comum que nos levava a escrever, e que nos fazia feliz escrevendo. O Carlos Drummond de Andrade foi um amigo que me ajudou muito… Ele disse: “Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra”. Um dia eu vi escrito num mural, na rua: “Tinha um caminho meio da pedra”. Que bonito isso! Se o Carlos Drummond fosse vivo eu mandaria pra ele essa mensagem: No meio na pedra tinha um caminho: a esperança.
É engraçada uma coisa… Na realidade os meus maiores amigos sempre foram homens. Desde a faculdade de direito, homens. Boas amigas e tal, mas os homens eram meus amigos maiores, não só na juventude como depois. Até um padre! Tenho um amigo padre. De vez em quando eu olho pra ele e digo: eu preciso me confessar! E ele diz, “Você não precisa”. É engraçado isso, a minha proximidade com o sexo masculino foi muito profunda sempre. Mas claro que também tive boas amigas. Mulheres fortíssimas, boas escritoras, sem a menor… sem aquele sentimento de inveja, rivalidade.
PL: A morte é um tema, uma questão recorrente em sua escrita. Como a senhora se relaciona com essa questão?
Lygia: É um tema difícil… Você teria que acreditar na imortalidade da alma, que você vai continuar… Às vezes eu acredito muito na imortalidade da alma nesse sentido. Tem um filósofo, cujo nome eu agora esqueci, que dizia: “Já fui um mancebo, já fui uma donzela, já fui um pássaro azul nas florestas e já fui um peixe mudo do mar”. Eu acredito na reencarnação, acredito… Se você for decente, honesto consigo mesmo e com os outros nesta encarnação, você vai ser uma coisa boa na próxima. Ser bom agora, porque você vai ser recompensado pela sua vida reta e justa atual.
PL: Como a senhora vê a situação do escritor atualmente, no Brasil?
Lygia: Principalmente no Brasil, os nossos livros não são lidos. Nós estamos num país onde seus os maiores e melhores escritores, um Manuel Bandeira, um Carlos Drummond de Andrade, ou mais lá atrás, um Machado de Assis, não são lidos. Se alguém aqui for amigo da nossa presidente, da qual eu gosto muito, mandaria um recado pra ela, um recado com o coração na mão: O dia em que o Brasil tiver mais creches e mais escolas, terá menos hospitais e menos cadeias. Outro recado que eu trago pra Dona Dilma, é um recado que vem lá da China, das antigas dinastias chinesas: Antes de sair para melhorar e consertar o mundo, dê três voltas dentro da sua casa. Ela tem muita coisa pra fazer aqui, a Dona Dilma pode ficar mais aqui conosco, ela vai encontrar muita coisa pra fazer e vai fazer muito bem porque ela é muito boa.
PL: A Clarice costumava perguntar aos seus entrevistados: “O que é o mais importante na vida?” Gostaríamos de repetir a pergunta dela para a senhora.
Lygia: Há varias coisas muito importantes, eu creio que seria injustiça da minha parte fazer uma classificação. A vida é dificílima, eu acho a vida muito difícil, então o melhor é você se aproximar de quem você ama, se puder, ficar com esse amor, amar a sua profissão, que é a sua vocação. Em latim, vocatio. Vocare, chamado. Você precisa obedecer ao seu chamado. Se você ama escrever, você tem que escrever, se você ama dançar, vai dançar. É tocar piano? Vai, pega o seu piano, se não tem piano, venda sua roupa, o seu sapato, venda o que tem, compra um piano e toca piano. Você tem que se aproximar, tem que se entregar à sua vocação, como o coração na mão, aí você fica feliz, aí você faz feliz a sua mulher, o seu homem, seja quem for, mas você precisa se entregar, obedecer a vocação. A vocação é um chamado que diz: “faz isso, não aquilo!”. Eu sempre obedeci a minha vocação, então, cheguei a essa idade avançada, como dizia mamãe, já dobrei o cabo da boa esperança [risos], mas obedecendo a minha vocação, que é escrever. Essa é a minha felicidade. Diante de deus eu posso dizer: “Eu cumpri minha vocação, aqui estou.”
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Texto: Ramon Mello e Manoela Sawitzki
Fonte: http://www.literal.com.br/destaque-medio-home/lygia-fagundes-telles-a-escrita-como-vocacao/#wrap
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