Dia 29 de setembro. Levanto da
cama. Abro a janela do quarto. Vejo que o dia está cinzento e chuvoso. Hoje é
meu aniversário, lembro-me então dos anos anteriores de lugares onde morei e
passei essa data, ou pelo menos tento, pois, como diria Renato Russo – “já
morei em tanta casa que nem me lembro mais, eu moro com meus pais”... Então é
meu “desaniversário”. Recordo também das pessoas que passaram pela minha vida e
que hoje se as visse na rua nem as reconheceria e vice-versa, amigos, amigas
namoradas, parentes e etc. Olho a hora no celular e também vejo algumas
mensagens dando-me os parabéns, todas com quase as mesmas palavras – feliz
aniversário!... E todas essas bobagens que dizem para quem está completando
mais um ano de vida e um a menos também. Dentre as mensagens tinha uma que
valia a pena – feliz aniversário e muitos anos de cachaça! E convidando-me para
beber... Era um colega dos tempos rasos e sem profundidade do cursinho, Marcio
era o nome dele. Não respondi naquele momento, pensei em manter-me sóbrio nesse
dia, queria ir ver um filme
no cinema, claro que não qualquer filme e nem em um cinema comercial, onde só
se passa filmes comerciais feitos somente para serem vendidos, tendo como
resultado filmes sem conteúdo que nada acrescentarão na minha vida. Tudo bem
que há algumas exceções que sempre acabam poucos dias em cartaz.
E enquanto as
lembranças vinham em minha mente com intensidade sem que eu pudesse
escolhê-las, eu entrava e saia do banho, tomava meu café e voltava para o
quarto. Deitado novamente eu tinha nas mãos um livro que não demorou a ser
posto de lado (Já faltavam poucas páginas). O livro era uma leitura de um
escritor bem reconhecido no meio acadêmico, falo de Marques de Carvalho que
tinha uma linguagem defasada e valores sociais da época ultrapassados também,
de difícil compressão a um primeiro contato. Tendo como objetivo um auxílio ao
leitor iniciante, que na maioria dos casos era quem estava estudando para o
vestibular da UFPA (Universidade Federal do Pará), onde o candidato tinha que ser
treinado para passar. Sempre me perguntava o porquê de não colocar leituras de
livros que, mostrassem a sociedade atual, a resposta era simples: a consciência
do povo é o medo do governo.
Decido então assistir a um
filme no qual os personagens viviam em uma realidade alternativa ou futura, em
que eram postos numa espécie de jogo voraz de sobrevivência, baseado num Best-seller, não demora muito para se notar a
infantilidade do roteiro e conjunto ruim de atores na tela. Dou-me o luxo de
ser crítico, pois, para quem já viu filmes com a direção de diretores como:
Copola, Hitchcock, Ingmar Bergman, Felini, Chaplin... Com certeza tem um censo
crítico para sétima arte. Mas continuo assistindo, então subitamente começo a
pensar, que grande filho da
puta que sou? Não vou mesmo beber nada nesse dia? Porra é meu aniversário! (Que
mais parece meu desaniversário).
Antes vou almoçar, tento
sentar-me a mesa nela estão meus velhos, olho para meu pai, não consigo passar
um minuto no mesmo lugar que ele. Às vezes não consigo acreditar que somos
parentes, o cara jamais leu um livro. E ainda por cima é alienado pela
televisão. Quando assisti um jornal, é só falando sobre crimes na cidade, o
mesmo acontecendo no jornal impresso que ao folheá-lo só falta esguichar sangue
no leitor.
Saio da mesa levando meu
pequeno almoço, depois de acabar, marco pelo telefone com Marcio para tomar
umas. Me visto e saio. No ônibus olhando pela janela vejo como um manto cinza
de nuvens cobrindo a cidade, pois, em Belém é assim: não existe verão ou
inverno, aqui se não chove o dia todo, chove todo dia.
Então cai a chuva. Quase que
simultaneamente, vem-me a vontade de chorar, mas seguro, pois, falta pouco para
que eu possa sentir como diria Bukowski o gosto do suco misturado com vida (álcool).
Ao saltar do ônibus a chuva não
parece tão forte, decido então atravessar a rua. Todos correm dos pingos
d’agua, e esquecem-se do quanto é bom sentir as gotas de chuva cair sobre o
corpo. Chegando à praça da república o lugar parece sem vida e devastado
diferente dos dias de domingo pela manhã aonde os pais de família vão com seus
filhos sendo que, o sol e a criançada enche de alegria, aquela singela praça.
Lugar onde se encontrava de todo tipo de pessoa, muitas do submundo, moradores
de rua, hippies, roqueiros, góticos, homossexuais.
Cada tipo deveria ter seu dia na praça, pois, parecia que esse era o dia do
homo. Não tenho preconceito então sigo e encontro Marcio em um coreto rodeado.
Ele fala ao telefone com Bruno que eu também conhecia das aulas de cursinho.
Não demora e Bruno aparece
moreno mais forte fisicamente do que Marcio que, aliás, não dava para perceber
pelas grandes camisas de roqueiro se Marcio era magro ou mais forte, o certo
era sua cabeleira era escura e de estilo macarrão instantâneo.
- Bora pro bar tomar umas
cachaças! – Diz Bruno ao chegar.
- Só se for agora! – responde
Marcio
- Vamo então!
O bar era localizado perto da
praça. Na rua... De esquina... De nome “meu garoto”. Faltavam poucos metros e
já dava para ver que o bar estava fechado (lá se ia à oportunidade de tomar uma
cachaça de jambu), mas ainda tinha outros bares, Marcio entra em um. Bruno e eu
ficamos na calçada conversando.
- E qual as novidades? –
perguntou-me.
- Nada de mais! Só que faz uns
dias que eu não bebo nada.
Essa reunião era só de amigos
de copo. Então com certeza após uns goles o papo iria fluir... Marcio volta do
bar com uma dose para o “teste”. Era uma cachaça de jenipapo com mel que ao
descer pela minha garganta foi purificando a alma. Resolvemos experimentar
outra, dessa vez nós três entramos no bar, o dono do bar nos deu então um gole
de outra de jenipapo também, só que essa não tinha mel em sua mistura. Bruno
bebeu a primeira dose, Marcio a segunda e eu logo em seguida. Nós já erámos
experientes no quesito bebida, mas todos nós sentimos a cachaça descer com
força goela abaixo fervilhando os órgãos internos, e como um acordo dos três
optou por essa. Enquanto estávamos na degustação do álcool, um velho que estava
bebendo no balcão se aproxima de nós. Era baixo de chapéu vermelho e camisa do
fluminense, ao lado do chapéu percebia-se que os cabelos brancos já o
abandonavam e não podendo faltar um bigode estilo português. Nem percebi quando
ele já estava falando de sua vida para nós.
- Tenho sessenta anos já, dois
filhos formados, trinta anos de casado, uma amante e ainda dou no coro. Quando
não levantar mais e ainda tenho minha língua e meus dedos.
Enquanto fingíamos ouvir ele
vinha e apertava nossas mãos. Eu não via a hora de saltar fora daquele bar
decadente com a cachaça.
Depois de pagarmos quinze reais
pela garrafa, nos puxamos de volta para a praça da república, no caminho pela
rua estreita, senti que com aquela garrafa nós iriámos ter um bom papo e eu
conseguiria dispersar a catarse que se encontrava no meu subconsciente.
A chuva já tocava o solo e
dessa vez parecia que seria forte o suficiente para encharcar nossas roupas.
Voltamos ao coreto. Onde se encontravam os casais... Olhei em volta e vi duas
gatinhas se beijando, eram morenas de uns dezesseis anos no máximo e exalavam
sexo, enquanto que na direção oposta havia duas digo dois meninos adolescentes
se... Brincando cheguei com as mãos na costa de Marcio quase que num abraço,
tirei e nós três começamos a rir, eu ainda rindo, disse que era a influencia do
meio. Com certeza todos ao redor ouviram. Márcio e Bruno começaram um papo, os
dois já se conheciam de longa data, os dois moravam em Viseu...
Fiquei no lado, olhando para as
gatinhas moreninhas do lado, uma delas não parava de olhar, a garrafa já ia
mais da metade. Bruno então começou a fazer planos:
- Cara! To querendo ver se
arrumo uma grana pro meu aniversário e fazer uma barca doida!
- Vai ter muita mulher lá? –
Perguntei.
- Com certeza, mano!
- Mas não colando o velcro?
- Não lá, não!
Foi aí então que percebi que,
os olhares se voltaram pra mim. Não disse por mal não, não sou um sujeito
preconceituoso. Já me livrei disso quando quebrei as correntes e arranquei o que
me cegava nos tempos obscuros e duvidosos de igreja. Falei só de brincadeira
mesmo.
- Mas primeiro preciso fazer um
arroz, bacana lá onde eu trabalho. – continuou Bruno -.
- E como é o esquema? –
perguntou Marcio.
- A parada é o seguinte: lá onde eu trabalho é uma empresa fornecedora de materiais de construção. Eu fico
na conferência, depois, por exemplo, que um caminhão de uma estancia qualquer
faz o pedido, eu pego e coloco uma quantidade a menos do que está sendo
vendida, sendo assim, o cliente paga pela mercadoria inteira, mas, na nota vai
uma quantidade menor, então a diferença vai pro meu bolso. Que geralmente varia
em torno de duzentos, trezentos reais, que eu divido com um camarada meu lá. Se
não for dividido eu tenho que pelo menos fazer a cobertura pra ele fazer o
esquema dele. Só que gente tem que tomar cuidado, que lá tem um “culhão” (todo
lugar de trabalho tem essas porras!) que é doido pra alcaguetar quem tiver
fazendo esquema, mas sei que ele também rouba lá.
Enquanto ouvia esse relato,
fiquei analisando a situação, não só dele, mas do brasileiro que já tem a
corrupção nas entranhas. Não querendo ser moralista, pois, quem garante que no
lugar dele eu poderia fazer o mesmo? (mas eu mesmo não faria, eu tenho
princípios) Mas é assim, no Brasil. Por exemplo, quando um cidadão pobre
devolve uma maleta com dinheiro achada pelo mesmo, todo mundo xinga o cara
dizendo que ele é burro e coisa tal... umas das heranças deixadas pelos
nobres, corruptos e
literalmente filhos da puta estrangeiros que vieram foder com o Brasil colônia.
E hoje só vemos os frutos dessa foda ruim para a plebe que ainda por cima é
rude.
Marcio achou legal o esquema. E
nossa garrafa já ia pelo fim, enchi o último copo, e traguei com decisão, e
lembrei-me de quando acordei ensandecido para sentir aquele maravilhoso sabor,
o sabor da vida! Márcio
pegou a garrafa já vazia e jogou, com o efeito do álcool em minha mente, vi a
garrafa sem vida girando várias vezes em câmera lenta antes de cair sobre a
grama. Enquanto no meu celular Guns N’ Roses tocava...
Acabou o álcool, acabou o
encontro. Descendo pelas escadas rumando em direção à parada de ônibus, na
direção contrária vinham duas bibas e ficaram encarando Bruno.
Tomei um susto, quando vi
falando alto:
- Que foi veado escroto? Nunca
viu não?
- Tão bonito, não!
- Vai-te fuder sua bicha!
Acelerei o passo e perguntei o que
tinha sido aquilo. Bruno respondeu-me num tom colérico:
- Não gosto de veado me
olhando.
Falei pra ele relaxar... Márcio
só ria da situação. Era o fim do encontro.