quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

OS ENCANTOS DO SOBRADO SOBERANO*



por Walter Rodrigues 

O sol estampava-se sobre os antigos prédios da Rua Siqueira Mendes – Cidade Velha. O sol queimava-me a pele. O sol refletia-se nos pára-brisas dos carros estacionados. O sol incendiava-se nos azulejos de estrelas menores, azuladas estrelas de oito pontas numa fachada austera e ampla.
Portas e janelas com detalhes em arcos plenos e com chanfros, um largo balcão em grade de ferro batido, faustosamente trabalhado, apoiado por bacia frisada em massa.  Dois andares decorados em relevo e com requinte, duas águias de ferro tentando bancar as ameaçadoras, no entanto, seus olhos inspiravam tristeza e melancolia. Suas asas amplamente abertas. Seus bicos pendiam a frente de forma insolente e, neles, traziam duas luminárias antigas. Tristes seres de ferro guardiões de algo deteriorado e perdido no esplendo de um tempo passado.
No topo do prédio, acima dos telhados coloniais, centralizado entre dois grandes pináculos, um medalhão em massa a trazer em si a ilustração em relevo de uma humana e graciosa face jovem rodeada pela inscrição:

“FABRICA SOBERANA HILARIO FERREIRA & CIA., LTDA”


Então, o tempo fechou-se. Nuvens cinza sufocaram e seqüestraram o sol. O céu desabou. Corri para o outro lado da rua e entrei num bar próximo.

- Uma dose de conhaque – pedi ao senhor do balcão.
- Que chuva, não? – comentou ele.
- Pois é – respondi.

Enquanto isso, eu aguardava a chuva passar, mas ela não passava. Onde estaria Dora Ruth? Com aquele aguaceiro duvidava muito que ela apareceria ali. Ficamos de nos encontrar para juntos conhecermos a Fábrica do Guaraná Soberano internamente e recolher alguns preciosos dados que pudessem nos servi de base para elaboração deste texto. Estava anoitecendo e provavelmente a fábrica fecharia daqui a alguns minutos. Então servir-me de mais doses e resolvi não pensar mais no assunto.
E a chuva escorria sobre os azulejos decorados da fábrica e sobre as faces das águias. Tive a impressão de que uma das águias me olhava. Senti um friozinho a percorrer-me a espinha e, tomado pela curiosidade sinistra que somente o medo é capaz de inspirar, resolvi corresponder aquele suposto olhar. Aquele olhar desequilibrou-me; lágrimas escorriam daqueles tristonhos olhos de ferro e desciam pelo seu bico espalhando-se sobre a luminária antiga.
Então, aquele sombrio início de noite fora clareado, instantaneamente, por um extenso e luminoso relâmpago e, quando os meus olhos novamente puderam definir contornos e profundidades, me deparei diante de uma “nova” e retrograda realidade.

… O rio Guamá aos fundos a exalar lembranças de antepassados aventureiros enquanto um crepuscular, resignado vento lasso lambia o calçamento em calcário de lioz da estreita e aportuguesada Rua Norte à Freguesia da Sé. As luminárias aguardavam mais uma arejada noite a fim de exercerem suas funções. E, de repente, a imagem daquele soberano sobrado datado do final do século XVIII. Suas medidas: 2.200m², fixado em um lote regular de aproximadamente 14 m de largura e imensa profundidade a fazer limite com o rio Guamá, uma imponente construção que se aproveita de cada milímetro do terreno, alinhando-se, impecavelmente, à via pública.
Propriedade primária de Engenheiro Olympio Leite Chermont, filho de Antônio Lacerda, o Barão e Visconde de Arary, o prédio é composto de três etapas distintas: a parte frontal, com fachada à Siqueira Mendes; a parte posterior, com fachada ao rio Guamá e a ala central, responsável pela união das duas citadas partes. A fachada principal desfila pomposa em um neoclassicismo que, apesar de tardio em Belém, fora bastante expressivo devido aos exorbitantes lucros obtidos pela borracha no mercado internacional. Inúmeros retoques foram feitos nessa fachada sem que esta perdesse sua configuração original, embora em maior escala tenhamos hoje o ecletismo. Já a fachada posterior, nos inspira sonhos de mil e uma noites com suas linhas rígidas e portas e janelas com vãos em arcos abatidos lanceolados. Observável influência mouristica.
E então, uma rica e ornamentada escada confeccionada em madeira de lei. Resolvi subi-la após alguma hesitação. Um estreito tapete velho deitava-se com luxo sobre os degraus. Já no segundo andar, no salão principal e no hall da escada, o assoalho trabalhado em madeira de acapú e pau-amerelo, dispostos de tal modo a formar figuras geométricas assim como estrelas de várias pontas. O forro, igualmente ornamentado com tais imagens, embora menores, entretanto, com maior variedade de cores: branco, amarelo, cinza.

Entre conversas animadas, lavavam-se e rotulavam-se garrafas. Um amplo e iluminado salão, divido em várias secções, exibiam, em fileira, o mais moderno maquinário de então. A presteza e a eficiência do trabalho e, a luz natural que emanava das imensas janelas de duas folhas, derramava-se sobre os semblantes de funcionários satisfeitos. E, presidindo tudo isso, lá estava ele, bem ao centro da fábrica, com suas mãos firmes a apoiar-se no gradil ornamentado e, daquela retangular abertura no segundo andar comunicava-se com o coração da fábrica, no primeiro andar. Era o Sr. Hilário Augusto Ferreira, pioneiro na exploração industrial do guaraná no Pará e fundador da Fábrica Soberano. Nascido em Melgaço do Minho, Portugal em 1898, Hilário mudou-se para o Pará quando contava com seus 14 anos. De garrafeiro a industrial de sucesso, a vida desse industrial fora dedicada a sua fábrica.
E o sucesso do Guaraná Soberano da Fábrica Soberana fora tão estrondoso que a mesma passou a ser chamada de a Fábrica do Guaraná Soberano. Embora ainda viesse contar com as marcas: Kola, Laranjada, Genebra Soberano, Vermouth, Água Soda, Água Tônica, Ginger-Ale e ainda: Cachaça, Vinagre e Álcool Soberano.

A voz que fala e canta para planície.
(…)
A sorte encontrou seu endereço.

Pude apanhar no ar estas frases numa esquina estreita. Era noite, entretanto, a rua estava movimentada. Moradores atentos diante dos rádios.

E a casa premiada é… 150!

Gritos histéricos vindo de uma casa próxima. Alguém havia faturado algo. Antônio Rocha a apresentar nas noites de Domingo o programa “A sorte encontrou seu endereço”. Um caminhão cedido pelo patrocinador a servir como palco, onde artistas da terra e até de outros estados apresentam seus shows. A Rádio Clube cuida da organização estrutural como a montagem da iluminação e aparelhagem.   
E lá estava a sorteada desse Domingo recebendo sua caixa de Guaraná Soberano e outros prêmios, agradecendo a PRC-5 e ao patrocinador do evento, o Guaraná Soberano.
 Era o guaraná na boca do povo. Os jornais paraenses e periódicos de outros estados a comentar a qualidade da bebida: sim! O único guaraná genuinamente “fabricado com o puro guaraná de Maués”, a tribo indígena do Alto Amazonas. Refrigerante saudável capaz de solucionar problemas cardíacos, digestivos além de funcionar como um excelente estimulante e afrodisíaco. Era o que ressaltava os versos de poetas como Bruno de Menezes e Jacques Flores.
De repente, década 70. As fábricas de refrigerantes paraenses tentam permanecer de pé frente à desigual força das transnacionais. Dificuldades financeiras, a morte de Hilário Ferreira em 1982, os grupos estrangeiros como a Coca-cola e a Pepsi a devorar com gula todo o mercado local, a inexperiência dos novos administradores, Hilário Filho e Jaime Ferreira, resultado, fecham-se as portas em 1986, da Fábrica Guaraná Soberano.

… 1996. Produção incipiente embora constante. 400 caixas da Kola Soberano por dia enquanto a concorrência produz 1000 por hora. As portas se abrem após 14 anos. A distribuição conta apenas com um caminhão e é feita pelos proprietários da fábrica que, com recursos próprios vão tocando a indústria de seu avô.

“A fábrica experimentou seus melhores momentos nos anos quarenta e cinqüenta, mas não resistiu à concorrência das multinacionais que se assenhorearam do mercado de refrigerantes. Agora, vai reagir.”
   
-… Rapaz, rapaz – uma voz distante me chamava – tu adormeceste aí?!
- O quê…? – levantei minha cabeça de cima do balcão.
- A bela adormecida acordou? – comentou jocoso um velho de aspecto zombeteiro que bebia ao meu lado.
- Por sorte tu não és meu príncipe encantado – disse eu em tom amistoso.
- O diabo que te carregue! Querer eu acordar macho com um beijinho?
Eu sorri sonolento. O cara do balcão também, enquanto o velho esvaziava sua dose de cachaça pura.

A instalação industrial da Empresa Soberano surpreende à primeira vista com seu maquinário moderno e importado. Entretanto, o sabor e a popularidade dos atuais refrigerantes e, principalmente do guaraná ainda deixam muito a desejar. No entanto, a importância dessa indústria para o Estado, tanto no aspecto social, econômico, cultural é inquestionável. No ano de 2007, Hilário Ferreira fora homenageado pela Assembléia Legislativa do Estado com o título “Cidadão do Pará Pós-mortem” em reconhecimento ao importante papel que exerceu a indústria local.


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* O texto foi inicialmente publicado no livro CIDADE VELHA - CIDADE VIVA, Belém-PA 2008. O livro foi editado pelo jornalista e professor Oswaldo Coimbra, responsável pelo Grupo de Memória da Universidade Federal do Pará – UFPA, ministrante da oficina e condutor dos trabalhos de preparação dos textos e das ilustrações.
 


OUTRAS INFORMAÇÕES A RESPEITO



  • SOBRE O LIVRO "CIDADE VELHA - CIDADE VIVA" leia o artigo  do Jornal Beira do Rio no link abaixo:    





  • SAIBA MAIS SOBRE A FÁBRICA NO SITE DA FUNDAÇÃO HILÁRIO FERREIRA

Um comentário:

ladyanne disse...

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