A Dolores
É a hora em que o sino toca,
Mas aqui não há sinos;
há somente buzinas,
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.
É a hora em que o pássaro volta,
mas de há muito não há pássaros;
só multidões compactas
escorrendo exaustas
como espesso óleo
que impregna o lajedo;
desta hora tenho medo.
É a hora
do descanso,
mas o descanso
vem t ar de,
o corpo não
pede sono,
depois de t anto
rodar;
pede paz — morte —
mergulho
no poço mais
ermo e quedo;
desta hora tenho
medo.
Hora de delicadeza,
gasalho,
sombra, silêncio.
Haverá disso no
mundo?
Ê antes a
hora dos corvos,
bicando em mim,
meu passado,
meu futuro, meu
degredo;
desta hora, sim,
tenho medo.
(Carlos Drummond de Andrade - in a Rosa do Povo, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 23-24.).
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