Era mais
um daqueles dias de pensamentos pastosos. Para onde seguir em situações semelhantes?
Não havia para onde escapar. O vento que vinha do Rio Guamá caía sobre minha
face eternamente fadigada me levando para bem longe daquele ambiente academicista.
Foi quando Luiz encontrou-me sentando sobre o muro de arrimo que tentava em vão
conter a fúria daquele gigantesco rio. O sol já começava a declinar e a brisa
da noite já se mostrava apetitosa e cheia de segundas intenções.
-
Álvares, parceiro – falou-me ele. – Que bebes aí?
- Uma
garrafa de cachaça – respondi passando um gole pra ele.
-
Puta-que-pariu! Não sei como tu consegues beber isso sem nem mesmo fazer cara
feia.
-
Minha cara já é feia naturalmente.
Assim
aquela garrafa começou a secar mais rápido do que refrigerante em copo de criança.
Sabíamos que as coisas não estavam fácies para nenhum de nós dois e para quase
todo o mundo. Por que se insisti tanto em vencer na vida? Por que as coisas que
não precisamos precisam ser alcançadas? Um carro do ano, um mestrado, uma
viagem para Europa, um celular de última geração, um computador porrada...
Alguma coisa me fazia senti tanta raiva disso tudo que, não diferente do meu
amigo Luiz, eu também gostaria que tivesse um novo começo e que essa sociedade
na qual vivemos jamais tivesse acontecido.
- Nós
já não somos mais nós e talvez nunca venhamos a ser nós mesmos, cara – falou-me
Luiz depois de longos goles com seus olhos perdidos no verde rubro daquele crepúsculo
sensacional.
Parecia
que as coisas caminhavam para uma irremediável destruição. Os conceitos
estabelecidos, as verdades que nos enfiavam goela abaixo pareciam desprovidas
de autenticidade. Tudo soava estranhamente falso e as coisas não estavam
caminhando para lugar algum aparentemente agradável. Era como se alguém tivesse
derramado vinho sobre o script recém-impresso em uma impressora de jato de
tinta. Tudo estava borrado e as cenas seguintes se mesclavam numa macha indecifrável.
- Luiz
– retruquei – vai tomar no cu, camarada.
E
rimos feitos dois dementes.
Estava
havendo uma feira anarquista na Praça do Carmo e Luiz me lançou o convite para
irmos lá enquanto ainda restava aqueles goles de cachaça vagabunda no fundo da
garrafa. Aceitei de pronto, afinal, pensei que deveria ser algo bastante
interessante uma feira do livro anarquista.
Chegando
lá o que vi foram diversos jovens, quase todos tão barbudos quanto eu. Diferente
do que eu imaginei, os livros estavam sendo comercializados. A feira anarquista
não era diferente de qualquer outra feira regida pelo sistema capitalista. Os
livros mais procurados eram os que custavam mais, obviamente. Aquilo me deixou
frustrado e senti vontade de beber mais ainda. Assim fiz e comprei um imenso
copo de cerveja. Luiz bebeu comigo e seguimos para tomarmos umas no Ver-o-Peso.
A noite
já ia alta e as putas e bandidinhos de merdas que ocupam quase todo centro
histórico de Belém vinham se chegando e nos pedindo dinheiro ou, no caso das
putas, nos propondo sexo. Queríamos apenas beber, mas numa esquina qualquer com
a Presidente Vargas, alguém nos levou o dinheiro e os cartões de meia passagem.
Estamos fodidos e não havia como voltar para nossas casas e o pior de tudo, não
havia mais dinheiro para bebidas.
Mesmo assim,
subimos em um ônibus. Ao notar nossa situação embriagada, o cobrador mandou que
nós pagássemos a passagem. E como estávamos totalmente duros, Luiz resolveu
pagar nossas passagens oferecendo um mouse para o irritadíssimo cobrador. O
cobrador não aceito a proposta e mandou o motorista parar o ônibus. Recusamo-nos
a descer, estão fomos empurrados até a porta de saída e lá ficamos no meio da
viagem.
Sem dinheiro e humilhados em público,
resolvemos voltar andando. Nossas casas eram longe demais dali para que
fossemos bem sucedidos nessa empreitada. Caminhamos por quase uma hora e ainda
ali na Avenida Nazaré, despencamos numa calçada e lá nos rendemos. Não havia
como seguir e nem como voltar. Era como se fosse nossas vidas aquela situação. Não
havia como seguir em frente e não havia como retornar. Toda a nossa vida se
resumia aquele instante.
Então
eu apalpei meus bolsos e para minha surpresa meu celular ainda estava lá.
Liguei para um amigo e expliquei a história. Eram quase duas horas da madrugada
quando consegui falar com ele. Então ele veio nos resgatar. Luiz, jogado na
sarjeta, não conseguia nem se erguer sozinho. Fui até ele, cambaleando e o
ajudei a se por de pé e a entrar no carro.
Seguimos
para casa do Naldo. Nosso salvador.
-
Álvares que porra de cachaça foi essa que vocês beberam – falou-me Naldo com ar
de risos.
-
Foiii aaaa daaas meeelhores, caaara! – tentou responder Luiz.
Eu
resolvi ficar calado, pois minha memória não conseguia esquecer aquela cena da
expulsão do ônibus e de toda aquela arrogância daquele cobrador. Ele não era
apenas um simples cobrador, ele era todo um sistema de governo sustentado na
coesão, na exploração e na humilhação dos que não possuem dinheiro suficiente
para passar a roleta. Eu estava terrivelmente puto e angustiado.
(Walter Rodrigues).
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