sábado, 5 de fevereiro de 2011

kamikASES lançados contra a perpetuação de uma escrita caduca





- Machado de Assis – continuou Samantha -, escreveu sobre a sociedade de sua época de forma irônica, e se aprofundou no psicológico de suas personagens sem precisar ser vulgar e baixo. 
- O problema, Samantha – reagi bastante ofendido. – É que a mentalidade desse país ainda acredita que para um texto ser verdadeiro, profundo e sério, ele precisa antes de tudo ser enfeitado pela obscuridade. Quando que na verdade uma idéia sincera e profunda tende a ser clara e compreensível. Minhas narrativas têm um propósito, mensagens a ser passadas. Não me venha com essa conversa de escrever com um Português fiel aos princípios porque nem eu, nem tu e nem Machado de Assis usamos essa droga. Se o Português fosse tão fiel aos seus princípios, Samantha, com certeza ele continuaria Latim. E eu já estou de saco-cheio de Machado de Assis! (RODRIGUES, 2009, p.220-221)


O conto que vocês estão prestes a ler é de autoria de Charles Alves, estudante do curso de Letras da UFPA. O texto em questão faz parte da revista literária kamikASES -ISSN 2178-1559 – Ano I, Edição n° 1, que juntamente com mais 18 textos de diferentes gêneros formam a revista dos alunos do curso de Letras da UFPA. Ainda pretendo disponibilizar os demais textos aqui.
Por tanto, começo com o primeiro texto da revista: O conto A CARONISTA de Charles Alves. Texto porrada, que prende a gente à página da primeira a última letra. Pauline e Paulo eis o encontro mais engraçado que eu já tive a oportunidade de ler. Dois personagens que de tão bem construídos suspeitamos se não andam por aí mesmo. Em carne e osso. Pauline, “a bicha mais feia dessas bandas do mundo” pedindo carona às duas da madrugada, e Paulo dirigindo o seu caminhão em alta velocidade pelas BRs da vida, embriagado, mas sem cigarros e sem uma foda para confortar sua alma.
Em minha opinião, este texto de Charles Alves, deixa transparecer a essência e o brado libertário que a revista transborda desde sua capa curiosa (retirada da propaganda do xarope São João, 1912, onde se observa um sujeito oprimido por força maior, embora tentado lutar, e as palavras em caixa alta como se saindo aos berros de sua cabeça, pois de sua boca não podia “LARGA-ME… DEIXA-ME GRITAR!”), passando pelo editorial Torpedos”, aqui postado, que eu considero um verdadeiro Manifesto contra toda forma de tentativa de subjugação à escrita a padrões estilísticos retroativos, criando desse modo uma literatura de fundo falso, ou de fachada, onde se vêem as coisas aparentemente bonitas e bem pintadas, o que se quer que se veja, mas que no fundo é desprovida de conteúdo, realidade real. Ignorando que: a arte transcende, a arte se [sub]verte e se [re]cria numa seqüência histórica [auto]remissiva de signos interpretantes… a arte é perigosa   (SANTOS e SANTANA, 2010, p.04).
     
Seja com for, agora, finalmente, peguem carona com A CARONISTA.


A CARONISTA
por Charles Alves*


Dirigia a 90 km por hora, completamente embriagado pela estrada a qual apenas seus faróis altos iluminavam. A garrafa de whisky vagabundo já ia pela metade e estava depositada no banco do passageiro. Não tinha medo de dormir, já haviam cochilado no volante antes e isso nunca o impediu de chagar onde queria. Seu caminhão ia sempre retilíneo pela estrada que parecia uma lança cravada no meio da mata, no meio do nada. Do lado direito, mato, e do esquerdo, mato.
Já era duas da manhã, há duas horas ele havia fumado o último cigarro e desde então não passou por lugar nenhum que tivesse uma carteira de qualquer merda para vender, e ainda faltava pelo menos duas até chegar a qualquer lugar onde pudesse encontrar alguém. Não que quisesse alguém em especial, mas naquela noite havia decidido que não dormiria no banco do caminhão de novo, e sim com uma putinha requenguela qualquer cuja companhia não passe de 30 reais.
Viu algo estranho mais a frente, foi diminuindo a velocidade, se atropelasse algum bicho desgraçado que amassasse seu pára-choque, a noite estaria realmente arruinada. Mas não era bicho, pelo menos não parecia enquanto o caminhão se aproximava a 40 por hora, era… era… Alguém? Que diabos alguém estaria fazendo nessa BR do diabo às duas da manhã pedindo caroba? Ah, foda-se, já estava bêbado mesmo, parou o caminhão, a porta se abriu e o caronista entrou.
Rapaz de seus vinte e poucos anos, vestido de uma mini-saia rosa gritante e um bustiê verde, sorriu um sorriso de quatro dentes ao entrar no caminhão.
“Boa noite senhor?” disse de modo afetado “estás indo para lá?” apontou pra única direção possível. O motorista pensou: “além de bicha ainda é burra”.
Acenando positivamente com a cabeça, ligou o motor enquanto analisava a recém adquirida carga. Estava realmente chocado com a aparência do caronista. O que lhe chocava não era a pouca idade, ele podia ser seu filho (e de fato, seu filho mais velho deveria ter essa idade). O que lhe incomodava no rapaz era pura e simplesmente sua feiúra, sim, sua feiúra, pois era feio de doer. Seu rosto moreno estava coberto por marcas de espinhas mal espremidas e inflamadas, seu cabelo maltratado estava pintado de uma cor que de tão desbotada lhe lembrou do que cagou pela manhã, e percebeu assim que este entrou sorrindo no caminhão que só possuía 4 dentes na parte superior da boca, seu corpo era magro e cheio de marcas velhas do que pareciam ser antigas piras, sem dúvida era a bicha mais feia que ele já tinha visto, tão feia que ele ficou sóbrio na hora, e foi com grande surpresa que percebeu que estava de pau duro.
Tentou perguntar alguma coisa, mas de tanta consternação as palavras morreram em sua boca, em seus 44 anos de idade nunca havia tido qualquer tipo de atração por indivíduos do mesmo sexo, em bares, dizia em alto e bom tom o quanto achava ridículo esse tipo de comportamento e repetia sempre que o único remédio pra curar viadagem era aplicado com umas boas porradas. Mas agora estava ali, sentado do lado de uma bichinha fulêra e não conseguia disfarçar que estava de pau duro. PAU DURO!!! gritava silenciosamente para si mesmo, “tenha vergonha seu velho, pelo amor de Deus, estás de pau duro!! Velho, pelo amor de Deus, estás de pau duro!!”.
Controlou-se dando profundas inalações de ar, olhou de soslaio para o caronista e percebeu que este havia percebido a vergonhosa situação na qual estava. Teve vontade de encher aquele moleque sem-vergonha de porrada, mas ignorou tudo ao redor e começou a pensar em milhares de coisas, câncer no estômago, a megera de sua sogra, ferida com pus, e assim conseguiu se controlar até que sentiu o volume da calça diminuir gradativamente. Quando se sentiu mais à vontade, virou para bichinha pra dizer alguma coisa, mas assim que viu aquela face horrenda olhando de volta para ele, a tensão em sua barriga aumentou e seu pau ficou duro de novo.
“Não tem jeito” pensou ele “vou ter que comer esse viado”.
“Hummmm…” começou ele em tom grave  “se vamos acompanhar um ao outro, poderíamos ao menos nos apresentar, não é? Meu nome é Paulo e o seu?”
A bichinha olhou para ele com um olhar estrábico de alegria contida “nossa, que coincidência, o meu também!” um silêncio incômodo pairou sobre os dois e se seguiu por mais dois ou três kilômetros , até que o ambiente se tornou tão denso que o caronista arriscou “Senhor, Paulo, o senhor se incomoda se eu acender um cigarro?”
“Só se você tiver um para me dar, Paulo?”
A tensão sumiu no ar como malandro que é pego pela polícia rodoviária.
“Pode me chamar de Pauline.” Foi a resposta do caronista seguido por um “Mas esse é o meu último.” antes que qualquer pensamento se instalasse na cabeça do motorista as palavras saíram mais rápidas que sua vontade “Então bora deixar pra depois da foda!”.

Silêncio.

Pauline momentaneamente tensa, mas isso não durou muito, como macaca velha de estrada anunciou de supetão “300 reais!” o caminhão quase saiu da estrada, acompanhado por um estrondoso “FILHO DA PUTA!!!” mas logo o volante estava sob controle.
Com a cara fechada de raiva, Paulo parou o caminhão e logo disse “sua bichinha de merda, tá achando que esse teu rabo escroto é de ouro? Ou tu me dá essa merda ou te encho de paulada  e te jogo aqui mesmo na estrada!” era o fim das negociações.
Pauline fez um biquinho de magoada que só serviu para piorar as feições já admoestadas de seu rosto e para aumentar a raiva do motorista, que a essa altura já estava com a calça para explodir  “O que vai ser?” era o ultimato.

Interlúdio

O mundo da estrada possui leis e mandamentos que só são entendidos pelos seus habitantes, é ambiente novo e perigoso para aqueles que não estão acostumados aos seus caprichos e devaneios. Habitado por motoristas de ônibus intermunicipais, caminhoneiros, traficantes, salteadores, vagabundos, putas e caronistas, possui seus próprios códigos de condutas que não estão escritos em nenhum códex de leis, mas que é de acordo comum entre todos seus habitantes.
Um dos principais e inabaláveis códigos é o que diz respeito à carona, e é mais ou menos assim:
Não importa se o motorista está indo para o mesmo lugar que o caronista, nada vem de graça nesse mundo, nem o pão, nem a cachaça, portanto, há a necessidade de uma troca, pode ser uma graninha, uma informação valiosa ou no mínimo, um boquetinho. Quem não respeita esse código está à mercê dos caprichos da estrada, e não se engane, nem a mais reles criatura se encontra á prova dessa troca, nem mesmo Pauline, a bicha mais feia dessas bandas do mundo.

Fim do interlúdio

Os dois seguiram para trás do caminhão, para a área de carga, a qual Paulo abriu e Pauline adentrou primeiramente. A área de carga fedia a cocô de cabra e serragem molhada. Lá dentro, no escuro, meia dúzia de cabras se acotovelavam e berravam assustadas quando a aberração humana adentrou o recinto fazendo uma cara de nojo que, pasmem, a deixava ainda mais horrenda. Paulo entrou logo em seguida gritando imprecações para os quadrúpedes idiotas, segurou Pauline por trás, pela cintura e com um gesto violento a derrubou no chão e lhe deferiu um chute nas costelas que a fez encolher-se de dor, logo em seguida debruçou-se sobre a bichinha depositando todos os seus 87 quilos em suas costas.
Foram 3 horas de berros e gritinhos de dor e prazer no final. O sol se levantava no horizonte iluminado o caminhão inerte á beira da estrada. Paulo foi o primeiro a sair da traseira do caminhão, com uma expressão impassível deixou a porta aberta e foi seguindo para a cabine, onde se sentou no volante e ficou olhando o sol nascer. Pauline saiu logo depois, toda escabelada, mas com um sorriso de mona lisa com malária no rosto, saiu ajeitando a saia curtinha, trancou a porta da traseira e seguiu para boléia, sentando-se ao lado de seu amante.
Os dois seguiram juntos pela estrada por duas horas sem dizer uma palavra, até chegar à cidadezinha de Santa Inês, onde fatalmente se separariam. Paulo parou no posto, Pauline abriu a porta olhou para ele “Adeus meu Ursão” e assim desapareceu às 7 da manhã naquele fim de mundo.
Paulo abaixou a cabeça, sentindo um estranho aperto no peito, encheu o tanque e seguiu viagem. Percebeu que Pauline esquecera (ou deixara de presente) uma carteira amassada de cigarro no banco. Paulo pegou o último cigarro estropiado e sem tirar a mão do volante o acendeu, relembrando da noite passada, deu uma tragada e depois jogou o cigarro pela janela.
“Filho da merda! Cigarro mentolado é pra bicha!”
Deixando poeira para trás, seguiu na estrada até sumir onde a vista não alcança.



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* [dez’ 1983], criança magrela e cabeçuda, chorava por tudo. Aos 2 anos gostava de jogar cocô nos seus primos, aos 4 anos já sabia fazer chantagem emocional, aos 7 seu pai lhe ensinou o que era a mentira, aos 10 anos descobriu a amizade e aos 11 a traição. Aos 14 anos viu uma mulher nua (que não fosse sua parenta) pela primeira vez. A bebida descobriu aos 16 e a caneta aos 17. Desde então dedica seu tempo a ler e escrever e em horas forçadas estuda Letras na UFPA.


kamikASES revista literária: é uma publicação do coletivo KamiKaze em parceria com Centro Acadêmico de Letras – CAL/UFPA. Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, opinião da revista, sendo permitida a reprodução parcial ou total de textos, fotos e ilustrações, por quaisquer meios, sem autorização, desde que citada a autoria.
contatos: coletivokamikaze@hotmail.com





Publicado também no Portal Literal!




CONSULTAS BIBLIOGRÁFICAS


RODRIGUES, Walter. Correndo atrás. Ed. Multifoco. Rio de Janeiro: 2009, p.220-221. 

SANTOS, Francisco Ewerton dos; SANTANA, Reinaldo “guaxe”. “Torpedos”. Belém: Revista Kamikases, Universidade Federal do Pará, n.01, 2010, p.03-04.

ALVES, Charles. “A caronista”. Belém: Revista Kamikases, Universidade Federal do Pará, n.01, 2010, p.05-07.


Um comentário:

Mônica Costa disse...

Sou fã do Charles!!! Os textos dele são sempre muito intrigantes e ousados! Gosto disso!

Parabéns pelo blog!